quarta-feira, 5 de julho de 2017

Sarrià 82: O que aconteceu naquele dia?

O Estádio Sarrià não existe mais. Foi vendido pelo Espanyol em 1997, por conta de graves problemas financeiros. O clube de Barcelona não faz muita questão de recordar a antiga casa. Nem mesmo a cidade e os torcedores guardam grandes lembranças. Perto do prédio que hoje ocupa o espaço do antigo estádio, apenas uma pequena placa recorda o passado daquele lugar. Os brasileiros, porém, insistem em não esquecer. Principalmente aqueles viveram (e sofreram) aquela tarde de 5 de julho de 1982.

Não é exagero dizer que aqueles 90 minutos sobre o gramado do Sarrià mudaram os rumos do futebol brasileiro e italiano. Telê Santana e sua proposta de futebol ofensivo até estiveram na seleção em 1986, embora sem o talento e encanto de 82. A eliminação para uma histórica França, nos pênaltis, foi o golpe final para deixar o futebol-arte de lado. A partir dali o jogo brasileiro se voltou para a força, especialmente no meio-campo. No fim das contas, a dupla de volantes que voltou a ganhar uma Copa foi Dunga e Mauro Silva, não Toninho Cerezo e Paulo Roberto Falcão.

Na Itália, a conquista da Copa do Mundo de 82 também “fez mal”, embora apontasse para o futuro do jogo. Era a vitória do chamado “il gioco all’Italiana”, do jeito italiano de se jogar futebol: força defensiva, marcações individuais bem definidas e obediência tática. Um jogo mais estruturado e menos improvisado, como seria nos anos seguintes. Esse estilo se espalhou rapidamente pela bota e só foi superado na década seguinte, com o inesquecível Milan de Arrigo Sacchi.

Foto: FIFA/Site oficial – Paolo Rossi, o atacante que destruiu o sonho do título

Mas tudo isso foi um desdobramento do acontecido naquele verão da Catalunha. A pergunta que muito se fazem até hoje, e ainda continuarão fazendo por longos anos, é: como a melhor seleção brasileira desde 1970, e certamente uma das maiores da história, pôde ser derrotada para a Itália naquele dia? Para entender isso, é preciso dar alguns passos atrás.

Antes da história: como Brasil e Itália chegaram para o jogo

O sucesso “Voa, Canarinho, Voa”, marcado na voz do lateral Júnior, não poderia ser mais apropriado. O Brasil chegava à Espanha voando, no campo e no placar. O time de Telê vinha de grandes resultados no ano anterior a Copa, com vitórias sobre Alemanha e França fora de casa. Na reta final de preparação, outros bons triunfos contra Portugal e, novamente, Alemanha, finalista em 1982.

Na abertura da Copa do Mundo, um bom teste frente à União Soviética. O organizado time do leste europeu ofereceu resistência ao recuar para defender sua área, mas Sócrates e Éder construíram a virada com dois golaços de fora da área. Depois, duas goleadas na fase de grupos. 4 a 1 diante de uma valente Escócia e 4 a 0 sobre a Nova Zelândia, com a impressão de que poderia ter sido muito mais.

Foto: FIFA/Site oficial – Sócrates, elegância e inteligência no meio-campo canarinho

Se o Brasil voava, a Itália capengava. O futebol local estava envolvido no Totonero, escândalo de manipulação de resultados que rebaixou Lazio e Milan; o treinador Enzo Bearzot era criticado pela crônica esportiva; Dino Zoff, goleiro e capitão da seleção que estava chegando aos 40 anos, não tinha a confiança da torcida após falhar em 1978; e, por fim, Paolo Rossi: o atacante estava há dois anos sem jogar por conta do Totonero, mas teve o apoio de Bearzot e foi titular na Espanha, mesmo sob uma chuva de críticas.

Com essa bagagem a Azurra chegou à Copa. Sob intensa pressão, fez uma primeira fase horrível. A chave com Camarões, Peru e Polônia parecia acessível, apenas com os poloneses Boniek e Lato como real ameaça. Mas tudo que os italianos conseguiram foram três empates e uma classificação graças ao número gols feitos: dois tentos contra um de Camarões, que também empatou seus três compromissos.

Foto: FIFA/Site oficial – Scirea, líbero e líder da seleção italiana

Quis o chaveamento que duas seleções com caminhos tão opostos se encontrassem no triangular da segunda fase. Brasil e Itália se juntaram a Argentina para disputar uma vaga na semifinal. Os duelos contra a Albiceleste foram os melhores de brasileiros e italianos até então.

A Itália fez o jogo que lhe convinha, como não pôde fazer na primeira fase: entregou a bola aos argentinos, colou Gentile em Maradona e verticalizou enquanto teve a posse. Em dois ataques rápidos, dois gols e vitória por 2 a 1. O Brasil teve alguma dificuldade no início, já que, pela primeira vez naquela Copa, alguém ousou atrapalhar a circulação verde e amarela na metade do campo. Aos poucos a posse brasileira ia fluindo, a bola correndo de pé em pé e os argentinos cansando. O Brasil soube deixar o jogo a seu favor e seu magnífico meio-campo escolheu o ritmo da partida. 3 a 1 para os comandados de Telê.

Mais do que deixar a decisão da vaga para a última rodada, as vitórias de Itália e Brasil mostraram o que eram os dois selecionados. Propostas divergentes que duelariam pela classificação.

Escolas opostas: assim jogavam os Canarinhos e os Azzurri

A Azzurra não tinha grande gosto pela bola e verticalizava seus ataques pelos flancos com os pontas Conti e Graziani. Diferente do que era moda na época, a dupla jogava com o pé invertido. O canhoto Conti, mais articulador, participava da construção e, às vezes, até da saída de bola. Centralizava mais próximo à divisa do gramado para jogar com os meio-campistas e auxiliar na circulação ofensiva. Já Graziani funcionava como um segundo atacante. Partia em diagonais no terço final, explorando os espaços abertos por Rossi e pisando na área para finalizar.

Quando precisava elaborar mais, outros dois nomes eram fundamentais: Antognoni e Rossi. Embora estampasse o número 9 azzurri, Antognoni era um grande armador. Ídolo na Fiorentina, onde vestia a 10 que mais o caracterizava, o meio-campista era o toque de inventividade no centro da seleção de Bearzot. Tinha o passe decisivo nos metros finais do gramado, controle de bola e capacidade de drible.

Arte: Doentes por Futebol – A Itália que parou o Brasil

Rossi era o centroavante único daquela seleção, mas não jogava sozinho. Era muito participativo na construção dos ataques, seja recuando pelo centro ou procurando as beiradas. Para uma seleção que ficava tanto tempo atrás da linha da bola, ter um jogador com características associativas assim ajudava na hora de atacar.

Diferente de Serginho, camisa 9 brasileiro. O então centroavante do São Paulo era o ponto fixo do leve time brasileiro e não participava da intensa movimentação proposta por Telê Santana. Estava sempre mais próximo aos zagueiros, esperando passes em profundidade ou cruzamentos. Sua valência estava na força física e sua contribuição ao ataque brasileiro esteve mais ligada a isso do que a movimentos para gerar espaços.

O centro daquele time, no entanto, estava alguns metros atrás de Serginho. Uma das melhores composições de meio-campo que a Copa do Mundo já viu. Cerezo e Falcão formaram uma dupla de volantes que ia além dos roubos de bola. Tinham talento para começar a gerar jogo a partir da intermediária defensiva. Podiam sair com a bola controlada, com passes que quebravam as linhas rivais ou tabelando entre si. Além disso, também chegava na área adversária para chutar a gol.

Arte: Doentes por Futebol – A escalação brasileira no Sarrià

Como se já não houvesse qualidade suficiente, ainda tinha Sócrates e Zico mais a frente. Ambos recuavam para jogar com os volantes e assim brotava o futebol que não precisou ganhar a Copa para conquistar o mundo. O corintiano, de inteligência muito acima da média, não dava dois toques se pudesse resolver apenas com um. Buscava até mais a iniciação das jogadas do que seu companheiro flamenguista, outro de inúmeros recursos e que esbanjava técnica, mesmo sempre tendo um adversário que só entrava em campo para contê-lo.

Ao espetacular quarteto, se juntavam outros três grandes nomes. O ponta esquerda Éder não guardava sua posição, entrava na brincadeira de movimentação e procurava posições para seu potente chute de canhota. Júnior, lateral esquerdo ambidestro, apoiava por dentro ou por fora, incorporava o meio-campo e chegava à área. Do outro lado, Leandro era importante peça para apoios e ultrapassagens pela direita.

Foto: FIFA/Site oficial – Júnior, sinônimo de técnica e criatividade partindo da lateral esquerda

O restante da defesa era o ponto baixo daquele time histórico. Os zagueiros Luizinho e Oscar eram jogadores comuns, favorecidos pelos diversos momentos em que o Brasil defendia em seu próprio campo com boa recomposição dos homens de meio. Waldir Peres teve uma falha monstruosa contra a URSS, depois não comprometeu, nem fez nada de espetacular.

E era justamente na defesa onde a Itália sustentava seu jogo. Zoff já tinha 40 anos e mesmo assim teve intervenções decisivas para o terceiro título do seu país. Scirea foi um ícone da posição de líbero pela noção de posicionamento, velocidade nas coberturas e precisão nos botes. Gentile, em uma semana, neutralizou Maradona e Zico com perseguições implacáveis. Além de outros coadjuvantes importantes, como Cabrini e Colovatti.

Foto: FIFA/Site oficial – Gentile marcando Maradona

Além dos nomes, aquela Itália de Enzo Bearzot tinha um nível defensivo muito grande. Sem a bola, apenas quatro jogadores tinham posições mais demarcadas. Rossi combatia os zagueiros ou volantes pelo centro, os pontas Conti e Graziani pegavam os laterais e Scirea ficava atrás de todo o time cortando o que passava. O restante era movido a marcações individuais pré-estabelecidas, correndo de acordo com a movimentação do ataque.

Hoje não daria certo, mas essa capacidade de correr atrás do oponente durante os 90 minutos era um diferencial italiano. Por mais que o time se desestruturasse, os encaixes iam até o fim sem dar tempo/espaço a quem estava com a bola. Tudo isso estruturado em cima de muita intensidade, concentração, coletividade e capacidade de destruição dos defensores. Para aquela Itália, passar muito tempo defendendo não era um problema, e isso fez total diferença no Sarrià.

90 minutos eternos: o que aconteceu no gramado do Sarrià

Paolo Rossi já tinha mais de 310 minutos em campo no Mundial de 1982 e ainda não havia anotado um gol sequer. Provavelmente seria o maior motivo de críticas ao treinador Enzo Bearzot se ele não tivesse feito uma fase final de Copa tão devastadora, a começar por aquele 5 de julho. Enquanto Conti, o armador disfarçado de ponta, escondia a bola de Cerezo, driblava Éder e invertia a jogada para Cabrini, Rossi se posicionava entre Luizinho e Junior para receber o cruzamento perfeito e mudar sua história e de seu país.

A partida começou intensa, com os dois times pressionando e perdendo a bola. Quando a Itália conseguiu vencer essa pressão, abriu o placar logo aos cinco minutos. Era o começo perfeito para o selecionado da bota, com o cenário ideal pra fazer seu jogo. E assim foi. O Brasil teve a posse e a iniciativa, a Itália aguardava em seu campo e acelerava o contra-ataque.

Sócrates baixava próximo aos volantes e o trio comandava a posse de bola verde amarela para colocar o time no campo ofensivo e acionar Éder, Zico e Serginho. Nesse contexto o principal duelo daquela partida (e da Copa de 82) dava as caras: Gentile x Zico.

Uma semana antes Gentile teve a dura missão de marcar individualmente Maradona. Não o parou, porque, como ele mesmo disse, “era impossível”. Mas controlou o argentino, que pouco adicionou ao jogo da sua equipe. O defensor italiano estudou o camisa 10 por dois dias antes de enfrentá-lo. Com Zico, soube de última hora que seria o encarregado de vigiar o meia brasileiro.

“Bearzot me avisou que eu ia marcá-lo [Zico] quando estávamos no túnel indo pro gramado. De início, ele tinha me dito que eu marcaria o Éder e Orialli cuidaria do Zico. Mas, na hora de entrar em campo, ele disse: ‘Pensei melhor e você marca o Zico’. Acho que ele tinha clareza de que deveria ser assim e só não disse antes pra não me deixar preocupado”. Claudio Gentile

Seja após longos estudos ou ainda digerindo a ordem do treinador, o jogador da Juventus teve duas exibições brilhantes. Colou no Galinho por todo o campo, cometeu faltas e rasgou a camisa 10 brasileira. Não deu sossego para o brasileiro, mas também não teve. A dura marcação não escondeu Zico, que seguia pedindo a bola mesmo com uma sombra em campo. Num desses lances, recebeu de Sócrates, aplicou um giro sensacional no seu marcador e colocou o camisa 8 na cara do gol para empatar.

Logo depois Zico venceu Gentile outra vez. Dominou, girou e achou a infiltração de Falcão. Poderia ter sido a virada, mas o volante não conseguiu dominar. O Brasil seguia com a posse, mas tinha dificuldades em furar o bloqueio adversário, principalmente pelo centro, onde estava a força do time. As chances mais perigosas surgiam em momentos de ataques rápidos, quando Scirea e companhia ainda não haviam retomado o posto defensivo.

Até que Toninho Cerezo, em momento de desatenção, errou um passe na intermediária recuperado por Rossi e finalizado em gol. A Itália voltava a ter a vantagem mesmo sem passar muito tempo no campo de ataque. E o Brasil precisava jogar para agredir a brava squadra italiana.

Foto: FIFA/Site oficial – Enzo Bearzot, treinador de uma equipe histórica

Veio o segundo tempo e os Canarinhos empurraram o adversário para trás. A Azzurra já não preocupava com o terço central do campo e focava em defender sua área. Cerezo, Falcão e Sócrates aproveitavam isso para alugar a metade ofensiva e martelar em busca do empate. Bearzot acumulava seus homens na faixa central, deixando os lados livres.

Então Júnior, em um de seus movimentos característicos, partiu da esquerda para dentro e achou Falcão isolado pela direita. Conter quem vinha de trás era uma das debilidades italianas por conta da opção por marcar individualmente no terço defensivo. Assim como Sócrates no primeiro gol, Falcão só chegou próximo à área para receber o passe e chutar. Ainda contou a ajuda de Cerezo, arrastando defensores na entrada da área, antes de empatar.

Foto: FIFA/Site oficial – Falcão comemora o gol de empate

20 minutos separavam o Brasil da semifinal. Telê buscou ter mais controle trocando Serginho por Paulo Isidoro e alinhando Sócrates e Zico por dentro. Serginho tinha sido engolido pela defesa azul na segunda etapa e pouco contribuiu brigando contra Colovatti (e depois Bergomi) e recebendo a dobra de Scirea.

O ponto é que o Brasil, embora dominante em termos de posse, não chegou a ser pleno nesse controle. Cedeu algumas oportunidades de contra-ataque ao time italiano, que poderia ter chegado ao terceiro gol, ainda antes do empate com Falcão, se Rossi não tivesse rematado torto.

Era um momento em que o selecionado verde e amarelo tinha a opção de ser mais cauteloso, mesmo tendo a bola a maior parte do tempo. Mas resolveu seguir seu DNA, talvez não pudesse abrir mão daquilo que o caracterizava. Não reduziu o ímpeto ofensivo e foi atrás do gol que selaria o confronto.

Em um cruzamento de Cerezo, cinco jogadores vestindo amarelo chegavam à área. Não chegou a ser um contra-ataque, mas a saída rápida de Zoff iniciou o ataque que culminaria no escanteio fatal. Rossi, que tanto se movimentava e associava com os companheiros, concluiu como um legítimo camisa 9 na entrada da pequena área. O Brasil tomava o terceiro golpe e não parecia capaz de se recuperar dele. Não ao seu jeito.

Os homens de Bearzot bloquearam a entrada da área, por vez com os onze jogadores alinhados entre as linhas paralelas da grande área. Eles tinham uma incrível capacidade de sustentar a pressão rival e pareciam aptos a defender bem por muito tempo. Ao time brasileiro faltava amplitude, opções para romper as linhas azuis pelos flancos e gerar algum desequilíbrio no sistema orientado em marcações homem a homem. O jogo era excessivamente por dentro e, a essa altura, Gentile controlava Zico, principal receptor dentro do bloco azul.

Foto: Reprodução – Azzurra bloqueando a área com os dez jogadores na faixa central

A bola aérea se tornou opção, mas Serginho já não estava na área para cabecear. A Itália rebatia bem as bolas alçadas, com exceção de uma firme testada de Oscar nos minutos finais, salva por Zoff em cima da linha. Foi a última tentativa daquele time histórico.

A vitória do sistema

O encontro no Estádio Sarrià deixou duas heranças para o futebol. Aquele time comandado por Telê Santana apresentou ideias que vivem até hoje, como o lateral apoiando pelo centro, a constante movimentação em torno da bola e a busca pelo domínio a partir da troca de passes. O treinador brasileiro escreveu um legado, preterido pelo brasileiro em troca do vencer a qualquer custo.

Já a equipe de Bearzot deu a dica dos caminhos que o jogo seguiria nos próximos anos. Um futebol mais coletivo, pautado pela organização e obediência a instruções treinadas. Estruturado defensivamente e com critério para atacar, além de grandes individualidades do meio pra frente, como Antognoni, Conti e Rossi.

Foto: FIFA/Site oficial – Zoff ergue a Copa do Mundo para a Itália

A partida que chamamos de “desastre do Sarrià”, Jonathan Wilson, jornalista inglês e estudioso do desenvolvimento tático do futebol, dá o nome de “vitória do sistema”:

“Talvez não tenha sido o dia em que o futebol morreu, mas foi o dia em que uma certa ingenuidade no futebol morreu. Depois dele, deixou de ser possível simplesmente escolher os melhores jogadores e permitir que eles atuassem com quisessem. Foi o dia em que o sistema venceu”. Jonathan Wilson

A Itália ficou com a vaga na semifinal e terminou campeã, igualando o Brasil em números de títulos mundiais. Aquela seleção brasileira, porém, encantou o mundo e inspirou gerações com o futebol apresentado nos gramados espanhóis. Acima de tudo, o Brasil de 82 conseguiu algo destinado apenas aos grandes times da história: a eterna lembrança e reverência, mesmo sem conquistar o título.

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