terça-feira, 5 de novembro de 2019

Um momento terrível, uma atitude nobre

Dois técnicos muito contestados se enfrentaram no último domingo, em Goodison Park, pela 11ª rodada da Premier League. Em jogo decepcionante, com atuações que passaram longe de corresponder à necessidade das equipes, o Everton de Marco Silva e o Tottenham de Mauricio Pochettino empataram por 1 a 1. Mas o aspecto esportivo da partida foi completamente ofuscado pela gravíssima lesão de André Gomes, que sofreu uma fratura no tornozelo direito e, já na segunda-feira, foi operado com sucesso.

A agonia de Gomes foi consequência de um carrinho muito imprudente de Son Heung-Min. Minutos antes, o português havia acertado com o braço o rosto do sul-coreano em disputa por espaço no meio-campo. Após revisão pelo VAR do lance que causou a lesão do meia do Everton, Son foi expulso. Ao perceber que seu colega de profissão estava em choque e com o pé assustadoramente fora do lugar, o atacante dos Spurs se deu conta do erro que havia cometido e entrou em desespero. Depois do jogo, Dele Alli relatou que Son nem sequer levantava a cabeça e não parava de chorar.

“O futebol não importa, só importa o André”, declarou Pochettino também após a partida, “e estamos devastados com o que aconteceu. Eu quero agradecer ao capitão (do Everton, Seamus Coleman), que foi ao vestiário para consolar o Son”.

O técnico do Tottenham foi particularmente feliz ao destacar a atitude do lateral-direito dos Toffees. Coleman, que em campo aparentemente perdeu a posição para Sidibé, marcou um golaço fora dele ao entender o que estava acontecendo.

Enquanto a situação de Gomes exigia cuidados médicos e apoio emocional após sua trágica lesão, Son também precisava de ajuda, estava completamente sem chão. Neste momento, é impossível mensurar a importância da iniciativa de Coleman logo após a partida e do próprio comportamento dos jogadores do Everton em relação ao sul-coreano, aspecto que Pochettino também salientou.

O futebol é uma indústria que exige muito do corpo e da mente de todos os envolvidos. Evidentemente, a exposição a que se sujeitam jogadores, técnicos, árbitros e dirigentes, seja a críticas justas a seus trabalhos ou a ofensas injustificáveis que podem vir de todos os lados, está ligada ao interesse e ao dinheiro gerados por um campeonato como a Premier League. Mesmo assim, não dá para perder de vista que o esporte é diariamente construído por pessoas, por vidas que também podem passar por diversos tipos de atribulações ou mesmo não suportar os holofotes quando as coisas não vão bem.

Jogos mentais (aquela troca de farpas que acontece geralmente entre técnicos), uma tentativa de desestabilizar o adversário ou mesmo uma discussão mais ríspida em campo fazem parte da bolha do futebol e são legítimas nesse contexto. Situações agonizantes, como a que envolveu Gomes e Son, ocorrem não porque alguém queira expor o oponente a um grande sofrimento, mas porque circunstâncias de uma partida podem levar um jogador a passar do ponto. E, claro, também há certa aleatoriedade em lances que causam lesões graves.

O jogo não precisa ser convertido em um retiro espiritual, e todos nós que o amamos temos o direito de torcer, provocar, vibrar com uma derrota do rival. Faz parte. No entanto, episódios como o deste domingo deixam uma lição importante de compreensão do futebol como um elemento da vida, oferecem uma aula de tolerância, perdão e empatia.

Coleman não poderia, naquele momento, ajudar diretamente seu colega português. Mas exerceu o papel de um verdadeiro capitão e, quando estendia a mão para suavizar a agonia do sul-coreano, fazia sua parte para tornar o futebol um ambiente mais amigável, em que as pessoas se solidarizam com todos os tipos de dor. Vale lembrar que há, nos elencos de Tottenham e Everton, pelo menos dois jogadores que já concederam entrevistas sobre terem enfrentado problemas de ordem emocional: Danny Rose e o próprio André Gomes.

André, que teve o passe comprado definitivamente pelo Everton na última temporada após um ano emprestado, vivia até há dois anos, do ponto de vista esportivo, o momento mais complicado da carreira no Barcelona. “Já me aconteceu, em mais do que uma ocasião, não querer sair de casa, porque as pessoas podem me olhar de lado. Ter medo de sair de casa por sentir vergonha. Não me sinto bem em campo, não estou desfrutando. Talvez a palavra não seja a mais precisa, mas transformou-se um pouco num inferno “, afirmou à revista Panenka em março de 2018, quando ainda estava no Camp Nou.

Pouco antes da Copa do Mundo, Rose revelou em coletiva de imprensa ter sido diagnosticado com depressão em 2017, enquanto estava afastado por uma lesão. “Ninguém sabe disso, mas meu tio cometeu suicídio durante a minha recuperação, o que também serviu como um gatilho para a minha depressão. Fora de campo ainda houve outros incidentes. Em agosto (de 2017) minha mãe foi vítima de racismo em Doncaster. Ela ficou muito brava e triste com isso, e depois uma pessoa foi à minha casa e quase atirou no rosto do meu irmão”, contou.

Para mencionar outro jogador, que inclusive passou pelos dois clubes, a expor sua batalha interna, Aaron Lennon (hoje no Burnley) também relatou ter sofrido com a depressão. Um levantamento de 2015 da FIFPro – associação dos jogadores profissionais – indicou que 38% dos futebolistas em atividade e 35% dos aposentados já passaram em algum momento por ansiedade, depressão ou ambos.

Como mostram alguns casos práticos, essas verdadeiras lutas podem ser impulsionadas por lesões (como aconteceu com Rose), pela percepção de que você não está fazendo bem seu trabalho (como no caso de André Gomes), por dramas familiares (também com Rose) e, claro, por infinitas outras questões. Os salários altos a cada semana – que, por sinal, são a realidade de uma evidente minoria dos jogadores profissionais – não garantem estabilidade emocional e não transformam nenhuma dessas situações em algo que não se deva levar a sério.

Um estudo da Brunel University London revelou este ano que os clubes ingleses são “deficientes e possivelmente negligentes” no tratamento psicológico dedicado a jogadores com lesões graves. “O foco está no trauma físico, mas eles deveriam ter um sistema de suporte integrado. Por que esperar até que o jogador tenha problemas? É do interesse dos clubes que eles passem menos tempo em recuperação, sejam lesionados com menos frequência, tenham menos problemas com desempenho futuro e sejam psicologicamente saudáveis”, avaliou a doutora em Psicologia Misia Gervis, que liderou o estudo, em entrevista exclusiva ao Telegraph.

Os clubes podem e devem ajudar a resolver o problema, mas, de certa forma, esse é um papel de todos. Ao torcer, enfrentar, comentar, cornetar e provocar (e nada disso está proibido), que a gente esteja vigilante para tratar as pessoas respeitosamente. Fica a torcida para que Son se recupere emocionalmente desses instantes terríveis e que André tenha a melhor reabilitação possível e receba os devidos cuidados médicos, físicos e psicológicos. E, claro, que a atitude de Coleman possa inspirar o futebol todos os dias.

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